[Resenha/Livro] Admirável Mundo Novo

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Título Original: Brave New World

Autor: Aldous Huxley

Ano de lançamento: 1932 (Inglaterra)

Editora no Brasil: Globo (edição lida: 2011)

Número de páginas: 309 (contando prefácios)

Continuando minha saga de ler distopias, ao terminar de ler 1984, de George Orwell, logo peguei Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.

A obra se passa em uma Londres muitos anos no futuro, mais especificamente em 632 D.F. (Depois de Ford!), o que daria no ano de 2540 no nosso calendário gregoriano. Com essa temporalização baseada no nascimento de Ford, já fica possível de compreender o que Huxley quer com sua distopia: aplicar o modelo econômico fordista a toda uma sociedade.

O fordismo é baseado nos ideais de Henry Ford, especialmente no de produção em massa e consumo igualmente em massa. Huxley pega esses dois ideais e cria uma sociedade onde os seres humanos são produzidos em série e conforme a necessidade e são incentivados ao máximo a consumir ao máximo os produtos oferecidos.

Com isso, não existe  mais o conceito de mãe, pai ou família. “Todos mundo pertence a todos”, como dizem as frases prontas que os habitantes desta Londres vivem proferindo, fruto de seu aprendizado hipnopédico, que se inicia desde o nascimento (de proveta). Com essa hipnopedia, as crianças vão aprendendo conceitos de segregação, consumismo e sexo, tudo na marra, não valorizando a experiência. Com isso, todo ser humano é, basicamente, um produto, que sai de série com todas as características já pré-determinadas, sem qualquer chance de alterar seu destino.

Isso certamente geraria um desconforto na sociedade em geral, mas isso pouco se sente nessa Londres fordista. O ser humano é extremamente condicionado a ser como uma máquina, com características já pré-concebidas e, para as mazelas que possam lhe afligir, surge o escape da realidade: a droga soma. Produzida sinteticamente, leva os habitantes ao delírio e fuga do real, fazendo-o se esquecer completamente dos possíveis problemas. Seu uso é extremamente incentivado por todas as gamas da sociedade. Alguns gramas de soma resolvem tudo.

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Mas mesmo assim há aqueles que não se encaixam na sociedade e procuram, bem, pensar criticamente (um ato visto como extremamente nocivo ao bem-estar social). É o caso de um dos protagonistas do livro, Bernard Marx, membro da casta social mais alta, os Alfas. O personagem não concorda com as fugas da realidade e nem com a forma como as coisas acontecem em Londres (e ao redor do mundo) e procura viver o real e questionar tudo. Isso faz com que ele seja feito de chacota social e também representar um perigo para a sociedade, e recebe ameaças de expulsão do país algumas vezes.

Esse pensamento leva Bernard a ir até um território selvagem, onde as pessoas ainda vivem sem toda a modernidade do fordismo social. Esse lugar é Malpaís, um território onde imperam princípios religiosos. Isso é algo desconhecido por Bernard e por Lenina, a outra protagonista da história. Lá eles vão conhecer John, chamado de “o selvagem” muitas vezes, dada a sua total diferença e alienação perante essa sociedade.

John é a figura que mais contrapõe essa sociedade. Apaixonado por Shakespeare, o personagem não consegue compreender a maioria das coisas que acontecem com a civilização que é condicionada a tudo, e nem esta consegue compreendê-lo. John refuta os ideais de que as emoções devem ser reprimidas, nessa sociedade que subjuga o amor e o conhecimento.

Admirável Mundo Novo é um livro sensacional e certamente mexe com quem o lê. Huxley foi um visionário e conseguiu acertar em várias coisas, seu medo era de que elas acontecessem cedo demais. A sociedade hoje é consumista e não prega o reaproveitamento das coisas. O conceito de “o novo é sempre melhor” é largamente empregado pelos cidadãos de Londres e acho que esse é o ponto central de absolutamente tudo do livro: sem a hipnopedia e o extremo demagogismo aplicado na sociedade, esse condicionamento inexistiria e o excesso de consumismo seria ao menos suavizado.

O livro também acerta no ponto de mostrar uma sociedade com um bem-estar social elevado, querendo ou não. Porém, toda essa sociedade é extremamente artificial, e John consegue compreender isso. Ao suprimir emoções e pensamento crítico, o ser humano não passa de uma máquina que desconhece o próprio status do que é ser humano. Como máquinas, eles são levados a nunca questionar o por quê das coisas e também a não terem nenhuma iniciativa própria a não ser o de transarem uns com os outros.

Outro ponto em que o livro pega é a falta de espiritualidade das pessoas. O conceito de Deus é abolido e é outra coisa que John refuta. Ele não consegue compreender como uma sociedade pode viver sem ter, por exemplo, medo da morte ou compaixão. Mas isso define a vida de todos que vivem nessa Londres: máquinas, que não adoecem e morrem quando o prazo de validade expira. John sofre com a morte de sua mãe e as crianças condicionadas ali não conseguem de forma alguma compreender o por quê desse sofrimento, porque justamente desconhecem o que é sofrer.

Essa sociedade, que parece tão avançada tecnologicamente, é extremamente burra e ignorante. Os livros clássicos foram proibidos e John, tendo vivido toda a sua vida em Malpaís lendo Shakespeare (era o que tinha à mão) recorre a trechos de suas peças para contradizer tudo o que vê. A civilização moderna apresentada desconhece conceitos de aprender e melhorar de vida e a divisão social por castas é garantida pelo soma. Essa sociedade jamais se revoltaria, pois desconhecem até mesmo a possibilidade de serem melhores do que são.

O desenvolvimento tecnológico é uma das maiores preocupações de Huxley, pelo que pode ser entendido no livro. Avanços na genética seriam aliados à tecnologia e a produção em massa de pessoas, de modo a satisfazer a demanda, tirariam a humanidade das pessoas, humanidade esta que está extremamente arraigada no conceito de família. Afinal de contas, o fordismo nada mais é do que a aplicação racional da tecnologia à produção econômica e Ford é Deus para os habitantes (que inclusive não fazem o sinal da cruz, mas sim o T, relacionando-o ao Ford T, modelo que popularizou o automóvel e revolucionou a indústria automotiva).

Aldous Huxley

Aldous Huxley

Assim como em 1984, o coletivismo da sociedade é tão grande que o individualismo é subjugado. Essa perda do individualismo leva à perda da identidade, que passa a basicamente inexistir, visto que com a produção em massa vêm inúmeros gêmeos, em grupos enormes, impossibilitando sua identificação, já que são, via de regra, as mesmas pessoas, determinadas pela casta social à qual pertencem. O sexo liberado e incentivado com todos os indivíduos é outro sinal desse coletivismo, que busca esmagar conceitos inatos ao ser humano, aliado, obviamente ao aprendizado forçado que os condicionam a se tornarem o que têm de se tornar.

Admirável Mundo Novo é um livro praticamente obrigatório a todos. Huxley consegue, com efeito, aplicar excelentes ideias de como ele pensa que o mundo estava seguindo à época e acerta várias vezes. Porém, não consigo considerá-lo uma obra atemporal, como considero 1984. O cenário extremamente tecnológico apresentado pelo autor me fez criar um grande distanciamento, e eu não consegui me sentir tão personagem quanto quando li o clássico de Orwell. Infelizmente é impossível não compará-los, mas acredito que as propostas de ambos eram diferentes: enquanto Orwell quis fazer um ensaio estritamente social, levando conceitos de fascismo a níveis muito preocupantes, Huxley tentou fazer uma ficção científica com aplicações de um conceito econômico que pode, infelizmente, ser aplicado a toda a nossa vida. No fim das contas, ambos são diferentes em sua proposta, mas ambos podem se completar, além de, claro, Huxley escrever sua obra em um momento completamente diferente de Orwell.

Nota final: 5 estrelas (em um total de 5)

[Resenha/Livro] 1984

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Título Original: Nineteen Eighty-Four

Autor: George Orwell

Ano de lançamento: 1949 (Inglaterra)

Editora no Brasil: Companhia das Letras (edição de 2013)

Número de páginas: 414 (contando apêndices e posfácios)

1984 se passa no fictício ano de 1984 (se é que é em 1984 mesmo). O livro foi lançado em 1949 pelo escritor inglês George Orwell, que também escreveu o famoso A Revolução dos Bichos. A história se passa em Londres, que agora não pertence mais à Inglaterra, mas sim a uma enorme nação chamada Oceânia, que é governada por um sistema de governo chamado de Socing.

Em toda a história, vemos Londres pelos olhos de Winston Smith, um membro do partido externo, uma espécie de funcionário público. É através dele que vemos toda a opressão de um sistema político mais totalitário do que jamais se viu.

Imagine se um dia as leis fossem abolidas. Um sonho para os anarquistas, em certas condições. Mas não nas condições de Oceânia, onde as leis realmente inexistem, e você não é proibido de nada, mas ao mesmo tempo qualquer coisa pode te incriminar. Em meio a tudo isso, o que mais pode te incriminar é simplesmente seu pensamento. Absolutamente qualquer sinal de ir contra o Partido (o que é chamado no livro de inortodoxia) pode te levar a simplesmente desaparecer, deixar de ser uma pessoa e virar uma despessoa.

O livro é claramente um estudo político do poder pelo poder, da opressão pela opressão. O Partido é um grande organismo, um pensamento coletivo que não está interessado em riqueza, nem nada. O Partido, como um todo, só se interessa pelo poder. A figura central do partido é o Grande Irmão (em inglês, o famosíssimo Big Brother, e eu acho uma heresia hoje ser um programa de reality show de tão baixa audiência), que é a imagem do pai do carinho e do castigo, ao mesmo tempo.

Ao longo de Londres, imensos cartazes com o rosto bigodudo do Grande Irmão está espalhado, sempre com os termos “O Grande 1984Irmão está vigiando você”. Essa vigia tem ao mesmo tempo uma significância de opressão e também de vigília mesmo, de cuidado. No entanto, como é possível perceber no livro, a figura é somente opressiva. Ir contra o Partido é ir contra o Grande Irmão, e vice-versa. Quem não ama o Grande Irmão deve aprender a amá-lo, acima de tudo, até mais do que os entes familiares. E acredite, o Grande Irmão está sempre vigiando: em todo canto há as chamadas teletelas, que são espécies de televisores com programação única (a de propagandear o Partido) e ao mesmo tempo possui câmera e microfones para captar qualquer sinal de inortodoxia. E não, a teletela nunca desliga; o Grande Irmão está sempre te vigiando.

Essa questão do amor, e também de todo e qualquer sentimento afetivo dos seres humanos para com outros é subjugada e aniquilada pelo Partido. Sentimentos de amor e carinho fraternal são sintomas de inortodoxia e demonstrar muito afeto pode ser encarado como crime. Crianças são estimuladas pelos próprios pais a denunciá-los caso vejam algum sinal de pensamento-crime.

Para controlar melhor a população a sequer pensar nesses crimes, até mesmo uma nova língua está sendo desenvolvida. Seu nome é Novalíngua e será universal por toda a extensão da Oceânia. Como ninguém tem contato com o mundo exterior, é impossível estudar outras línguas. Na Novalíngua, perfeita para o Partido, palavras inortodoxas serão abandonadas e extintas e, em algumas gerações, não será possível que se pense em alguma palavra que desagrade o Partido. Por isso, o trabalho dos linguistas da Oceânia não é inventar novas palavras, mas sim destruir as já existentes, aglutinar termos e etc. Pavoroso.

Veja bem, os crimes nunca chegam a acontecer em 1984. Não há atentados contra o Partido. Ninguém pode atentar contra o Partido, o Grande Irmão jamais se fere, jamais erra. Ao menor sinal de divergência social, de uma palavra que saiu da sua boca sem querer já é motivo para ser levado aos confins do Ministério do Amor (o partido é dividido em quatro Ministérios: o do Amor, responsável pela espionagem e controle da população; o da Pujança, responsável pelo controle da economia; o da Paz, responsável pela guerra; e o da Verdade, responsável pela imprensa e, acima de tudo, na falsificação de documentos e reinvenção da História).

Algo que o livro trabalha muito é nesse contexto de realidade, passado e História. A História da Oceânia está em constante mutação. Nada existe antes do Partido e se algo já existiu, era pior do que os tempos de agora. O Partido cresceu em uma época onde o capitalismo estava em alta. A revolução aconteceu, os capitalistas caíram e agora são apenas uma sombra do passado, definidos como escravistas e opressores do povo. Diz o Partido: “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado.”

Nisso, o conceito de realidade se desmancha no ar. Existe somente uma realidade e, consequentemente, uma verdade: a do Partido. Por exemplo, há outras duas supernações no livro: a Eurásia e a Lestásia. As três nações sempre estão em guerra ou em aliança, e esse quadro vive sendo invertido. Porém, o Partido prega que a guerra ocorre desde sempre com a atual, e sempre era aliado da outra. Por exemplo, se até ontem a guerra era contra a Lestásia e hoje passa a ser contra a Eurásia, modificam-se todos os documentos para que não haja forma de provar que algum dia a Oceânia esteve em guerra com a Lestásia, mas sim semrpe com a Eurásia.

Isso acontece a todo momento com todo tipo de documento. Quando uma pessoa simplesmente some (ou seja, vai parar no Ministério do Amor), todos os seus registros são apagados e ela passa a nunca ter existido. Falar sobre ela é uma loucura e leva o falante ao mesmo lugar da despessoa. Esse controle da Verdade é essencial para o Partido, que jamais erra. O Partido nunca pode errar, isso colocaria as pessoas em dúvida quanto à soberania do mesmo.

A teletela exibe o rosto do Grande Irmão.

A teletela exibe o rosto do Grande Irmão, na adaptação cinematográfica do livro.

Em certo ponto do livro, os pilares do Partido são inteiramente dissecados. São eles: “Guerra é Paz”, “Liberdade é Escravidão”, “Ignorância é Força”. É nessa parte que o estudo político fica mais evidente. Fica bem claro aí que o maior objetivo de Orwell não era fazer um romance passado em uma realidade imaginada, mas sim que esse romance era só a desculpa para ele criar um mundo que ele imaginou e assim poder dissecá-lo ao seu bel prazer. Nisso entra também um dos conceitos mais importantes do livro: o duplipensamento, uma das bases mais importantes para a lavagem cerebral do partido. O duplipensamento consiste em ter duas ideias conflitantes dentro do cérebro e aceitar as duas. É algo difícil de se absorver, e quando esse assunto começa com força no livro, fica uma leitura pesada e extremamente intelectual. Com algum esforço, com o passar do livro, esse termo consegue ser compreendido e assimilado pelo leitor, além de os seus motivos serem perfeitamente coerentes com o totalitarismo que impera na Oceânia. Afinal de contas, as coisas só são como o partido quiser que sejam. Como diz o livro muitas vezes “2 e 2 são 4, mas pode muito bem ser 3 ou 5, caso o Partido queira que seja”.

O fato é que Orwell é um gênio, um visionário. Tem tanta coisa nesse livro que hoje é atual, isso se não for dizer que tudo o que ele diz é atual. O mais aparente é o controle e manipulação da mídia. Ainda não chegamos ao estágio de modificar a História ao ponto do Partido, mas sabemos que os jornais e revistas são facilmente manipuláveis para dar a notícia do agora.

Outro ponto muito importante é o caso das guerras incessantes, onde eu claramente vejo o discurso da Guerra ao Terror dos EUA como muito parecido com a das guerras intermináveis entre Oceânia, Eurásia e Lestásia. Talvez os motivos sejam distintos, mas a tensão que gera é a mesma, o patriotismo exaltado, a xenofobia, o preconceito do diferente, tudo isso é canalizado. No fim das contas, a sociedade criada por Orwell é gerenciada e movida pelo ódio, e hoje não estamos tão longe disso.

O condicionamento desse ódio é feito de várias formas, mas a mais perturbadora é a chamada “Dois Minutos de Ódio”. Imagine a “Hora do Brasil” no rádio, porém dessa vez na televisão, e onde apareça o rosto do maior inimigo da nação (no caso, o traidor do Partido Emanuel Goldstein) vociferando frases contra o Grande Irmão e também dando tiros para todos os lados. O mais completo caos acontece, os corpos totalmente tensos dos moradores, oprimidos até mesmo sexualmente, ficam em uma espécie de frenesi coletivo ao ver tal cena, e isso ocorre todos os dias, como forma de mostrar que sem o Partido, o inimigo triunfaria e levaria a Oceânia ao caos. Tanto é que após tanta demência raivosa, surge o rosto apaziguador do Grande Irmão, acalmando a todos. Como não amar o Grande Irmão, não é mesmo?

O livro é dividido em 3 partes, que vão conforme a rebeldia de Winston vai crescendo contra o Partido. Na primeira, o personagem começa a escrever em um diário (coisa extremamente perigosa de se fazer), onde começa a demonstrar sua lucidez perante a opressão do Partido (culminando na frase “Abaixo o Grande Irmão!”). Na segunda, é seu envolvimento amoroso com Julia, uma mulher com pensamentos inortodoxos, porém cuja rebeldia não é exatamente contra o Partido, pois o que não a afeta, pouco a importa. A mais terrível é a terceira, onde mostra todo o esqueleto do partido e é explicado e mostrado como toda lavagem cerebral acontece. O Partido não mata ninguém que o odeie, ele precisa converter qualquer rebelde, como  se fosse uma religião, e aí reside o por que do Partido se classificar como eterno: nunca sobra ninguém contra o Grande Irmão.

A manipulação do povo em si é realizada muito mais nos membros do Partido Externo, que são como se fossem a classe média (a classe alta é o Núcleo do Partido), que têm seus cérebros lavados todos os dias, a todo minuto, e vivem no medo absoluto de ter um pensamento-crime. A classe baixa (os chamados proletas) são a maior parte da população e não constituem o menor perigo para o partido. A revolução sempre vem de alguém estudado, normalmente da classe média, que incendeia a classe baixa, fazendo-os ver quão miseráveis e famintos são. Portanto, a cartada final do Partido é justamente essa: enquanto os proletas precisarem trabalhar feito condenados e serem educados com mínima qualidade (e sempre de acordo com a ortodoxia do Partido), não representam o menor perigo e, dominando-se o Partido Externo com o medo e a opressão, o controle absoluto e o pensamento coletivo, punindo-se o menor sorriso enviesado, não há como a derrubada do Partido acontecer.

O pensamento coletivo é outra necessidade básica do Partido. O Eu é abolido, ninguém pensa por si próprio. Pelo contrário: o Partido pensa por todos. Qualquer sinal de individualismo é detectado como uma atitude desviada do normal (e eu nem preciso dizer onde ela vai parar, né?), por isso as pessoas ficam sozinhas basicamente somente na hora de dormir. Todas as outras atividades são realizadas em conjunto, em centros comunitários.

De início, eu pensei que o livro fosse uma crítica às ditaduras totalitárias, especialmente à socialista e aos fascismos. No entanto, percebi que não. O livro não toma posições, Orwell não está ali para apontar um caminho. Apesar de os capitalistas serem, de certa forma, mostrados como os “coitados” devido a sua derrota pelo Partido, eles não são mostrados como os heróis nem nada. 1984 não está ali para dar uma dica, um conselho para o próximo passo da civilização, mas sim para dar o alerta para onde tudo pode parar devido à crescente onda de ódio que existia desde lá, onde os sentimentos positivos das pessoas podem ser vistos como fraquezas ou, pior: como atos revolucionários e contrários à ordem.

George Orwell

George Orwell

Para a complexidade da estrutura apresentada por Orwell, o livro é de leitura bastante rápida e até mesmo simples. Ele não se preocupa em usar linguagem muito pomposa, nem descrições enormes, a não ser quando essas descrições configurem em uma imagem da opressão realizada pelo Partido. Isso  me surpreendeu bastante, pois esperava uma leitura difícil. O difícil é absorvê-la, mas não lê-la. Muitos conceitos de difícil digestão, que vai te fazer ficar pensando e pensando por horas após fechar o livro (terminei de ler ontem e não conseguia dormir, pensando nas implicações que 1984 aponta).

Em nenhum momento fiquei entediado. Pelo contrário, o livro me levou embora horas de sono, onde eu falava “que se dane, vou ler mais um capítulo”, além de haverem algumas partes onde a humanidade de Winston aflora e a nostalgia dos tempos pré-revolução aparecem, especialmente nas partes onde ele descreve sua mãe, uma pessoa amável e carinhosa, praticamente de uma espécie já extinta: essas partes me deram um nó no coração equanto lia.

1984 é uma leitura obrigatória a basicamente todo mundo. Um livro profético, visionário e extremamente atual. É daqueles que a cada vez que você ler, vai ver as coisas de uma forma diferente, e pensar principalmente no cenário atual do mundo. E eu nunca fui tão personagem de um livro como fui quando incorporei Winston na terceira e derradeira parte toda. Senti todas as dores, confusões e conflitos por quais Winston Smith passou. Obrigado pela leitura, George Orwell.

Ele está sempre vigiando. E os olhos sempre te seguem. Não há esconderijo.

Ele está sempre vigiando. E os olhos sempre te seguem. Não há esconderijo. (INGSOC é o Socing em inglês)

Nota final: 5 estrelas (em um total de 5)

[Resenha/Filme] O Homem da Máfia

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Nome original: Killing Them Softly

Ano: 2012

Diretor: Andrew Dominik

Tempo de filme: 97 min

Ah, fazia tempo que queria ver esse filme. Gosto muito das atuações do Brad Pitt e foi o que principalmente me chamou para assisti-lo.

O Homem da Máfia, como dá para perceber, vai ser um filme, bem, sobre máfia. Mas não espere voltar décadas no tempo… o filme se passa na época em que Barack Obama estava disputando as eleições presidenciais com John McCain, há apenas alguns anos atrás… foi em 2008. Durante todo o filme ouvimos notícias, do rádio e da televisão, sobre a corrida presidencial, com discursos e notícias, principalmente vindos de Obama.

O filme vai se centrar em Jackie Cogan (Brad Pitt), um cara contratado para tratar de assuntos da máfia… especialmente assuntos que envolvam deixar alguém em uma situação de ir para o necrotério. Ele é contratado após um jogo de cartas, protegido pela máfia, ser assaltado, e isso vai trazer complicações generalizadas a todos. Portanto, sim, Jackie é o cara da vez.

Mas, ao invés do filme se tratar puramente em chefões da máfia dando suas bênçãos e coisas do tipo, o filme vai focar essencialmente nas ações de Jackie como assassino de aluguel. Não somente, mas também como ser humano. O filme é baseado em um livro chamado Cogan’s Trade, de George V. Higgins, de 1974. Nunca li o livro (e também nunca tinha ouvido falar até ir ler mais sobre o filme após assisti-lo), mas como estamos falando do filme, acho que pouco importa o quão fiel foi – principalmente por se tratar de uma adaptação fora do tempo do próprio livro.

O filme possui uma tomada mais pessoal da vida de Cogan. Ali, vemos uma tentativa de humanizar o assassino, de ver a pessoa por trás do mal. E isso é feito bem, visto que o que Jackie faz é encarado por ele mesmo como puramente negócio. Ele não vê graça no que faz, não gosta, mas tem que fazer, e acaba misturando suas emoções com isso.

Porém, o filme não se trata de um dramalhão que tenta sentimentalizar o assassino. Pelo contrário, pois Cogan nunca se nega ao seu dever, e nem mesmo se sente abalado em frente ao que tem de fazer. Mas suas falas e a atuação de Brad Pitt são muito verdadeiras e carregam bastante sentimento. Jackie gosta de matar suavemente (daí o nome do filme), de uma distância segura, tentando não dar chances de ouvir súplicas ou coisas do tipo.

É nisso que o filme vai se basear propriamente. E o enredo em si é bastante sólido e sem muita firula. Não é o seu filme de ação comum, e muito menos seu filme de drama comum. Sua duração já é bastante estranha para um filme como esse: tem pouco mais de 1 hora e meia. Por isso, o filme não fica longo demais e nem mesmo chato. A vida de Jackie Cogan é muito bem contada e é isso que importa, além de sabermos o que vai acontecer em sua missão.

O filme possui bons diálogos, principalmente aqueles que acabam por refletir as notícias da corrida presidencial. E um pouco da estrutura da máfia pode ser entendida também, mas o filme nem de perto mergulha nesse quesito.

Ray Liotta, outro grande ator (que fez o aclamado filme de máfia Os Bons Companheiros) tem uma boa participação e trabalha bem. O outro ator principal do filme, Scoot McNairy, também não desaponta e tem bons momentos, e seu personagem não se mostra muito fácil de ser representado, pois é bastante inconstante e cheio de angústia.

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Liotta

O Homem da Máfia apresenta bons quesitos técnicos, alguns jogos de câmera excelentes e as cenas de violência são duras e cruas, todas voltadas à rápida execução. Não espere ver no filme tiroteios e nem mesmo brigas, pois tudo é feito objetivamente e acaba bastante rápido. Especialmente quando há tiros, dando evidência principalmente para o som, que vem a ser o mais realista possível, é bem alto quando há um disparo de arma. Nesse ponto, o filme prezou por um maior realismo do que por uma caricatura.

Há também um excelente uso de trilha sonora, com músicas que acompanham bem as ações. E aqui é onde principalmente o filme mostra que não há homens bons e nem maus, pois muito do nosso conceito de “isso que ocorreu é bom” ou “isso que ocorreu é ruim” vem da trilha sonora usada na hora. Não aqui. Matar alguém não é bonito, mesmo que seja necessário e a pessoa seja um crápula. Mesmo Jackie sendo um personagem carismático, ainda assim não tem como ver suas ações como algo belo.

O Homem da Máfia é um filme excelente, e eu recomendo a todos. Com atuações sólidas e uma direção muito boa, o filme resgata o conceito de filmes sobre mafiosos, mas dando um ar novo e refrescante ao gênero. E no final das contas serve muito bem como crítica política, pois enquanto vemos um Obama dando mensagens de esperanças, de mudança, de futuro em meio ao caos econômicos, vemos Jackie Cogan fazendo o que sempre fez, e cada vez mais descrente em tudo, especialmente na mudança.

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Nota final: 5 estrelas (em um total de 5)

[Resenha/Livro] Harry Potter and the Philosopher’s Stone

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Título no Brasil: Harry Potter e a Pedra Filosofal

Autora: J. K. Rowling

Ano de lançamento: 1997 (Reino Unido)/2000 (Brasil)

Edição lida: Inglesa (Adult Hardcover)

Editora: Bloomsbury

Número de páginas: 223

Ah, Harry Potter! Isso fez parte da minha infância. Acredito ter sido um dos primeiros a ler o livro aqui no Brasil, logo nos anos 2000. Um amigo me emprestou o primeiro livro, quando ele o nome Harry Potter ainda era escrito sem luxo algum, sem raio saindo do P nem nada do tipo. Bons tempos, onde eu, no auge dos meus dez anos, começava a tomar gosto por ler livros.

Olha aí a capa do primeiro Harry Potter que li!

Olha aí a capa do primeiro Harry Potter que li!

Antes já havia lido O Pequeno Príncipe, O Menino no Espelho, O Menino do Dedo Verde e mais alguns aí… mas foi Harry Potter que me fez amar ler, certamente. Já reli o primeiro livro da série inúmeras vezes, mas agora decidi que vou reler a série toda em inglês, no original.

Agora não, porque ano passado terminei Harry Potter and the Philosopher’s Stone e estou perto de terminar Harry Potter and the Chamber of Secrets. É claro que eu sabia de tudo o que acontecia, mas é legal reler no original. Justamente porque aí pude perceber as diferenças de adaptações.

Bom, para quem não sabe (o que acho difícil existir), o primeiro livro conta o início da saga de Harry Potter, o garotinho que sobreviveu de um feitiço mortal praticado pelo bruxo mais malvado e temido de todos os tempos. Após a terrível fatalidade, que levou os pais de Harry para o além, o garoto foi criado por duros e terríveis anos por seus tios horrorosos e teve de conviver com seu primo mais intragável ainda.

Sua sorte reside em uma carta que chega quando seu aniversário de onze anos se aproxima, informando-o que ele é na verdade um bruxo e que teria uma vaga especial em Hogwarts, uma escola para pessoas dotadas de poderes mágicos. E então o livro vai narrar sobre as aventuras de Harry nesse mundo fantástico que é Hogwarts, onde a maior parte da história se passa.

A premissa parece bem simples, e é. Não se engane, Harry Potter and the Philosopher’s Stone é um livro infantil. Classificam-no como infanto-juvenil, mas a realidade é que é muito mais infantil do que juvenil. Contudo, a riqueza do universo criado por Rowling é impressionante.

O livro (na época e agora) me leva a lugares longínquos e inimagináveis. A imaginação rola solta durante toda a leitura, com animais fantásticos, feitiços e um pouco de história daquele mundo mágico. É um universo bastante inspirado, e os personagens melhoram isso ainda mais.

Essa é a primeira capa do livro no Reino Unido. Horrorosa.

Essa é a primeira capa do livro no Reino Unido. Horrorosa.

Ao invés de Rowling fazer Harry Potter como um modelo a ser seguido, um aluno exemplar e tudo mais, ela resolve fazer o contrário e o coloca como uma figura de se tomar pouca nota a não ser por ele ser famoso por ter derrotado (sem saber) o mais terrível bruxo de todos os tempos, Voldemort (pssst – Você-Sabe-Quem). Um garoto desleixado, que não sabe nada sobre magia e nem procura estudar sobre, e que deixa as tarefas para as últimas horas, Harry é o garoto comum em idade escolar.

Isso é interessante, pois, apesar de Harry ser o herói da história, ele nada seria sem seus dois melhores amigos: Ron Weasley e Hermione Granger. O trio é essencial para a aventura, sendo Hermione a mais inteligente de todos. Nascida trouxa (ou seja, de pais não-mágicos), Hermione possui magia correndo no sangue e foi para Hogwarts com basicamente todos os livros já decorados. Estudiosa e esforçada, é sempre ela quem tem a iniciativa de pesquisar sobre algum mistério, especialmente o que fica ao entorno do livro: o da Pedra Filosofal.

Ron representa a lealdade e a amizade. Pronto para o que der e vier ao lado de Harry, também se mostra muito mais do que é na escola – visto que é tão desleixado quanto o protagonista. Sem ele, Harry facilmente falharia em todos os seus propósitos durante o livro.

Por fim, Harry vem por representar a coragem e a superação. Um garoto órfão que teve uma infância difícil com os tios e agora é uma celebridade em Hogwarts, Harry possui uma curiosidade enorme e um bom senso de justiça. Isso o vai levar a várias encrencas e problemas, e isso vai trazer à tona sua determinação e coragem por impedir que algum mal ocorra.

O resto dos personagens são extremamente carismáticos e interessantes. Desde os professores ao brilhante diretor de Hogwarts, Albus Dumbledore, bem como o rival de Harry, Draco Malfoy, percebemos a profundidade dada aos personagens. Não há aqui quem seja totalmente bonzinho ou totalmente mauzinho. O Yin-Yang é muito balanceado por Rowling, e é por isso que nos apaixonamos facilmente por todos os personagens da série. Obviamente temos favoritos, mas até mesmo os mais secundários têm momentos interessantes.

Uma coisa para se notar na tradução para o português é o personagem Hagrid. Quando li em português, ele falava tudo absolutamente certinho, normalmente, que nem qualquer outro personagem. Porém, em inglês a coisa é diferente: Hagrid fala errado e com gírias, diferentemente dos outros. Isso mostra seu baixo grau de instrução. Não sei por que não fizeram isso na versão nacional, pois dá mais personalidade… só posso imaginar que, por ser um livro infantil à priori, preferiu-se deixar corretamente, para evitar que as crianças saíssem escrevendo errado… é a única coisa plausível.

A primeira aventura de Harry Potter foi, por muito tempo, meu livro favorito. Já devo tê-lo lido mais de quatro vezes em português, e agora soma-se uma em inglês. A linguagem é simples, direta e funcional, e Rowling tem o dom da narrativa dinâmica e até mesmo didática, não é nem um pouco difícil ler no original esse livro. Ok que o início é bem lento, talvez até mais do que o necessário, mas é importante sabermos quem são os Durlsey (os tios de Harry) e como ele foi entrar em Hogwarts. E ainda acho que, mesmo sendo o mais infantil da série, é um dos melhores dela.

Uma cena da adaptação cinematográfica do primeiro livro. Ao fundo vê-se o castelo de Hogwarts.

Uma cena da adaptação cinematográfica do primeiro livro. Ao fundo vê-se o castelo de Hogwarts.

Nota final: 5 estrelas (em um total de 5)

[Resenha/Filme] Sangue Negro

Sangue Negro

Nome original: There Will Be Blood

Ano: 2007

Diretor: Paul Thomas Anderson

Tempo de filme: 158 min

É difícil falar sobre dramas. Normalmente acho difícil passar o que assisto desse gênero para o papel e acho que o brilho desse tipo de produção fica muito mais por conta da atuação dos atores do que por qualquer outro motivo. E isso já é motivo suficiente para assistir a Sangue Negro.

O filme conta a história de Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis), um homem do petróleo que atua entre o finalzinho do século XIX e o início do século XXI, arrendando terras (ou comprando-as), perfurando seu solo em busca de ouro negro. É um homem de sucesso, diga-se de passagem e basicamente onde ele toca vira ouro (negro).

O filme todo vai se focar na construção do personagem de Daniel Plainview e vai mostrar seus momentos como homem de negócios e também como pai de família. Um sujeito complicado, ganancioso, com o dom do discurso e bastante bipolar. E para isso somente um grande ator poderia fazer certo.

Daniel Day-Lewis brilha o filme todo, contra um cenário árido, desértico e ensolarado das inóspitas localizações onde o filme é rodado, especialmente na cidade de Little Boston, que se transforma completamente graças a Plainview. O ator dá um show, o que já era de se esperar. O personagem é deveras complexo e Lewis o traz à vida com muita facilidade, colocando trejeitos, expressões duras, movimentos específicos e sua voz soa muito condizente com o personagem. É uma atuação bastante verdadeira, sem truques, que me fez acreditar naquele homem e até mesmo compreendê-lo em seus diversos momentos de uma insanidade justificada.

Freasier e Day-Lewis

Freasier e Day-Lewis

Todos os problemas de Plainview, no entanto, acabam sendo gerados ao redor de seu filho, H. W. (Dillon Freasier [criança – maior parte do filme]/Russell Harvard [adulto]), um garoto que serve como propaganda a seus negócios e acaba facilitando o trabalho dele. Freasier trabalha bem como um garoto sem muita motivação e que aparenta amar o pai acima de tudo. Todo o drama vai girar em torno da relação de pai e filho e a ligação dos dois é enorme e Daniel Plainview não sente vergonha alguma de demonstrar todo o seu amor ao seu filho, em uma época onde as relações desse tipo eram baseadas no distanciamento e obediência total por parte dos filhos.

Por fim, o último tema que o filme vai abordar com certa força é o da religião, cujo personagem central é o pastor Eli (Paul Dano) e, caso não fosse Daniel Day-Lewis como o personagem principal, facilmente ele ofuscaria as cenas onde contracenam. Dano faz um papel forte e perturbado, procurando fazer sua Igreja da Terceira Revelação crescer e buscando o apoio de Plainview, que busca negar a religião de todas as formas possíveis.

Desse triângulo se forma o personagem de Daniel Plainview, entre o petróleo, a família e a religião. Um homem duro, poderoso e esperto.

Dano e Day-Lewis

Dano e Day-Lewis

O filme é bastante forte e trata de temas um tanto incômodos. O personagem de Day-Lewis causa uma impressão boa de início e sua desconstrução é brutalmente feita durante as duas horas e meia de filme. Ao final, sentimentos mistos pelo personagem podem ser facilmente encontrados dentro de quem assiste. Mas uma coisa é positiva: a atuação de Day-Lewis foi impecável.

O clima do filme é realçado ainda mais devido à secura em que se encontram os cenários: desertos e fazendas onde nada nasce. Daniel vem trazer prosperidade para a cidade de Little Boston, com o custo de secar as reservas de petróleo, mas a desolação e melancolia estão o tempo todo estampadas no cenário. As cenas em buracos claustrofóbicos devido à perfuração também causam desconforto devido às condições dos trabalhadores, sempre sujos de petróleo, lama e poeira.

Por fim, há uma trilha sonora forte e muito presente, que dá um tom que às vezes pode-se imaginar até mesmo se tratar de um filme de terror. Achei que todas as músicas se encaixaram bem na proposta das cenas, carregando de ainda mais emoção e sentimento a vida do próspero Daniel Plainview.

Sangue Negro é um filme excelente, porém cobra caro: é bastante lento. Quem não tiver paciência para um drama comum, deverá passar longe desse filme, que pode entediar até mesmo quem está em busca tão-somente de ver a atuação impecável de Daniel Day-Lewis, apresentando longas cenas de close em personagens e suas feições, bem como uma introdução enorme com quase nenhum diálogo, porém que é essencial para compreendermos quem é Daniel Plainview.

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Nota final: 5 estrelas (em um total de 5)

[Resenha/Filme] Django Livre

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Nome original: Django Unchained

Ano: 2013

Diretor: Quentin Tarantino

Tempo de filme: 165 min

Ontem fui ao cinema assistir a Django Livre, o novo filme de Quentin Tarantino, controverso diretor de filmes cultuadíssimos, como Pulp Fiction, Cães de Aluguel, Kill Bill e Bastardos Inglórios. O filme gira em torno de Django (Jamie Foxx), um negro nos Estados Unidos antes da Guerra Civil, ou seja, ainda na época da escravidão. O filme é um faroeste propriamente dito, com muitos momentos que remetem aos antigos bang bang, especialmente a época dos Spaghetti Western.

E que escravidão. Depois de ver o filme fiquei com a impressão de que a coisa lá era pior do que foi aqui. Sei que as diferenças se bobear nem foram tantas, mas o filme ressalta tanto a questão do negro, e de uma forma tão brutal, que fico com a impressão de que o branco americano dos Estados Unidos à época da escravidão era pior do que o brasileiro em relação aos escravos.

Veja bem, certamente a palavra mais citada no filme é nigger, traduzida como crioulo na versão nacional legendada (e a dublada que vá à puta que pariu). E isso já fala muito sobre o filme por si só. Nigger é uma palavra extremamente depreciativa e usada ainda hoje como insulto lá pelas terras do Tio Sam. E quase não se referem aos escravos de outra forma que não essa durante todo o filme. Todo negro é um crioulo para eles, não existe o menor respeito entre o branco e o negro. O filme consegue ressaltar isso de forma perfeita e o desprezo latente dos brancos para com os negros é perfeitamente visível.

Why is that nigger on a horse?

Why is that nigger on a horse?

Django no filme se torna um caçador de recompensas e por isso anda a cavalo. O desespero e medo das pessoas ao verem um negro a cavalo é avassalador. Ouve-se muitas vezes a fala “Why’s that nigger on a horse?” (“Por que esse crioulo está em cima de um cavalo?”).  Esse medo por parte dos brancos de um negro estar acima deles é mais uma vez bastante evidente a todo o momento. E isso é facilmente percebido pelo personagem de Leonardo DiCaprio, um senhor de escravos fazendeiro, que chega a se questionar por que os  negros não se revoltam, afinal, há muitos mais deles lá (na fazenda) do que brancos.

DiCaprio, porém, encontra a resposta em uma suspeita ciência, que diz que os negros possuem marcas no crânio que os dedicam à servidão. Isso é mais um ponto que me pôs a pensar, pois a escravidão ao passar dos tempos foi se justificando cada vez mais. Prisioneiros de guerra, pessoas de outra raça/cor, pessoas sem Deus no coração… e esse motivo científico pode se juntar facilmente a esse rol de falácias que buscam justificar um ato hediondo de se possuir um ser humano.

Essa subserviência é completamente rejeitada por Django que, após se juntar com o dr. Schultz (Christoph Waltz, o coronel Landa, de Bastardos Inglórios), um alemão em terras americanas, começa a tomar gosto pela desobediência ao branco. E assim começa uma onda de vingança, com muito tiro, sangue, tripas espalhadas, explosões e muito mais.

Waltz e Foxx

Waltz e Foxx

Nisso Tarantino é mestre. Sinceramente, ninguém consegue criar uma violência tão divertida quanto ele. É muito engraçado ver um cara explodir após um tiro. E não é só porque é exagerado, mas sim porque é feito para parecer divertido. Dei risada com cabeças explodindo, devido a toda a situação. E não é também porque é para ser engraçado… eu não consigo encontrar o motivo, mas o conjunto da obra faz essa violência ser extremamente hilariante.

E também o filme tem uma comédia extremamente engraçada. Há inúmeros momentos de doer a barriga de tanto rir, especialmente em um onde um protótipo da Ku Kux Klan é ironizado, mostrando o quão ridículos são aqueles capuzes… ridículos porém perigosos, obviamente.

E as brilhantes atuações de todos os atores envolvidos são excelentes. O filme é muito bem estrelado, com os três principais sendo Jamie Foxx, Christoph Waltz e Leonardo DiCaprio.

Quanto ao principal, Jamie Foxx, sua atuação é muito boa. Ele atua muito bem como o escravo sem instrução alguma, que desconhece palavras fáceis como “positive“. Sua atitude irritadiça e revoltosa contra os brancos é justificada pelo plano de fundo e muito bem executada por ele. Nas cenas de ação rápidas com tiroteio e até mesmo chicotadas, Foxx atua com enorme naturalidade. Seu personagem não é assim tão difícil e traz muitos clichês de filmes de ação e também dos antigos faroestes, do pistoleiro buscando vingança.

DiCaprio vem como um fazendeiro dono de escravos e francófilo (mas que não fala francês – haha). Um cara ligeiramente pacato e com amor à brutalidade da luta de escravos, o personagem do ator é bastante difícil. Ele mesmo diz que não é tão simples demonstrar desprezo a grandes atores negros por causa do papel. Certamente o monsieur Calvin Candie é um dos personagens mais nojentos e ultrajantes atuados por DiCaprio. Um ser mesquinho, preconceituoso e poderoso. Os melhores momentos são nos de explosão e raiva incontida, pois a melhor expressão deste ator, para mim, é a de raiva. Parece ser muito natural para ele sentir raiva e se ver no controle da situação.

DiCaprio

DiCaprio

O filme, no entanto, é de Christoph Waltz. Em Bastardos Inglórios já vimos uma atuação sem precedentes com um personagem terrível, e em Django Livre ele faz um papel totalmente contrário: o do estranho em uma terra estranha. Seu nojo pelos senhores de escravos é aparente e transpassado para os espectadores com naturalidade, especialmente quando presenciando os abusos de escravos – ao passo em que isso é normal para Django (mas não menos deplorável). O personagem de Waltz é intrigante e se identificar com ele é fácil. Sem ele, o filme não funcionaria de forma tão boa e se tornaria mais mediano sem ele. O dr. Schultz é o elo de ligação de tudo (inclusive do espectador para com a tela), o cérebro do filme de qualquer forma e toda ação tomada por ele é justificável e feita com naturalidade incrível, um personagem bastante calmo e sem papas na língua, que porém interpreta diversos personagens quando necessário.

Com uma participação menor, porém não menos brilhante, temos também Samuel L. Jackson, com seu personagem escravo Stephen, um lambe-botas do monsieur Calvin. É um personagem extremamente mesquinho e que não consegue se colocar no seu lugar e age como se fosse algo mais do que um escravo, como se fosse o braço direito de seu senhor, oferecendo-lhe conselhos e delatando seus iguais. Percebe-se que ele é o mais preconceituoso personagem de todos e isso revela mais ainda sobre o filme, trazendo ainda mais à tona sua questão atual, que trata essencialmente sobre o quão preconceituoso somos para com nossos iguais, somente por gozarmos de um status mais avantajado. Sua atuação é tão boa que é possível até mesmo se pensar se Jackson está mesmo velho daquele jeito e mancando… mas seu sotaque de escravo “mano” é impossível de ser identificado, e traz mais personalidade ainda.

Samuel-L-Jackson

L. Jackson

Tecnicamente impecável, a trilha sonora junta o antigo com o novo, dando o tom certo ao filme. Músicas antigas trazidas diretamente dos vinis originais de Tarantino dão o tom perfeito para Django Livre. Ennio Morricone e Luis Bacalove, duas lendas das trilhas sonoras dos filmes de faroeste marcam presença, enquanto ouvimos em vários momentos hip hop misturados com o ritmo faroeste. Simplesmente impagável, a trilha sonora se mostra marcante desde a primeira cena do filme, com a música tema do filme Django original (cujo ator principal participou também de Django Livre).

Sem título

“Uma nota sobre a condição de gravações mais antigas: Eu estou usando essa trilha sonora – muito dela veio da minha coleção pessoal de vinis. Em vez de as gravadoras me fornecerem novas versões digitalizadas e mais limpas dessas gravações dos anos 60 e 70, eu quis usar os vinis que eu estive ouvindo por anos. Completo com todos os ruídos. Eu até mesmo mantive o som da agulha sendo abaixada no disco. Basicamente porque eu quis que as pessoas tivessem a experiência igual à minha quando eles ouvissem essa trilha sonora pela primeira vez. – Q(uentin)”, imagem tirada do livreto da trilha sonora oficial do filme.

A direção de arte, fotografia e tudo mais do filme também é maravilhosa, mostrando a degradação do negro escravo e a ascensão de Django como um vingador da raça. Ponto especial também para o figurino do filme.

Django Livre é um filme excelente. Tarantino nos trouxe mais uma obra prima, cheia de humor, mas na medida certa, suficiente para nos manter entretidos e nem um pouco entediados. A ação também é bastante equilibrada com os diálogos maravilhosos e reviravoltas de tirar o fôlego. Tarantino é um diretor que faz o que você menos espera quando ele quer e muitas coisas que acontecem no filme podem ser um choque, totalmente imprevisíveis.

Ouça a música tema do filme, Django.

Vão ao cinema e gastem seu dinheiro com Django Livre. Vale a pena. E muito. É até mesmo aconselhável levar o seu avô que adorava ir ao cinema todo fim de semana assistir a um filme de velho oeste, pois muitos clichês da época são encontrados, apesar de ter uma faceta extremamente atual. Quem sabe o gênero não consiga ser revivido depois de Django Livre? Eu espero que sim!

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Nota final: 5 estrelas (em um total de 5)

[Resenha/Filme] Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, Partes 1 e 2

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Nome original: The Dark Knight Returns, Parts 1 & 2

Ano: 2012 (Parte 1)/2013 (Parte 2)

Diretor: Jay Oliva

Tempo de filme: 76 min (Parte 1)/75 min (Parte 2)/151 min (Total)

Há muito tempo não via um desenho animado. Ponho essa culpa em grande parte a esse tipo de filme estar sendo deixado cada vez mais de lado, para dar espaço a essas animações, que me afastam demais devido a inúmeras coisas. Simplesmente, estou cansado de animações. Pode ser que seja nostalgia eu sentir saudades de ver um O Rei Leão ou Aladdin e desprezar tanto assim as animações computadorizadas de hoje em dia, mas eu gostaria de ver um retorno do desenho animado às telonas.

Enquanto isso não acontece, vi muita gente falando sobre a adaptação dos quadrinhos de Frank Miller chamado Batman: The Dark Knight Returns e aí estava uma boa oportunidade: desenho e com o meu herói favorito de todos, o Cavaleiro das Trevas. Tudo bem que esse desenho tem muita ajuda e recursos tecnológicos, mas bem, a essência dele ainda é de desenho animado, e não de animação computadorizada. Portanto, fui assistir às partes 1 e 2 e vou dizer o que achei.

Para começar, assim como com Watchmen, não, eu não li os famigerados quadrinhos de Frank Miller. Certamente é uma meta de leitura, mas, por enquanto, não li. Sempre tive curiosidade, no entanto. Tanto esse quanto ao próprio The Dark Knight. E que melhor oportunidade se não essa de poder assistir uma obra que está sendo amplamente aplaudida como uma adaptação extremamente fiel à HQ?

Para a minha estranheza, a história é centrada em um Bruce Wayne idoso. Muito incomum ver o Batman com algumas rugas e quase sucumbindo a inúmeras dores provenientes tanto do seu afastamento como Batman (cerca de 10 anos sem vestir a roupa de homem morcego) quanto pela sua idade avançada.

Um ponto bom desse velho Batman é que é possível perceber sua amargura perante a cidade estar cada vez mais violenta, tudo proveniente de seu afastamento. Gangues perigosas estão à solta e tocando o terror em Gotham e a população vive com medo. Com isso, Bruce se sente na urgência de retornar a vestir a capa e enfrentá-los. Tudo bastante comum, exceto pela personalidade densa do personagem, principalmente pelo fato de ele estar mais velho, o que dá um toque a mais para suas motivações. É como se fosse seu último esforço para tentar manter a cidade pacífica. Tudo o que Bruce Wayne faz durante as duas partes parece um esforço colossal, é possível sentir o seu cansaço, apesar de ele ainda ser forte, rápido e tudo mais, o que mais se sobressai é o quão vulnerável ele está. Obviamente, vulnerável para inimigos de peso, e não para os policiais e suas armas de fogo.

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Batman, como sempre, atua como um anti herói aos olhos da sociedade. Uns aplaudem sua atitude de sair combatendo o crime, enquanto outros repudiam veementemente essa atitude, julgando-o como um criminoso. Isso é reforçado durante toda a animação, onde é possível ver a mídia inclusive influenciando no caso. A questão dos direitos humanos é constantemente levantada e a figura do Cavaleiro das Trevas está sempre no meio, sendo constantemente debatida pela socidade de Gotham.

Durante a primeira parte, vemos esse retorno do Batman e também o início de um novo Robin. Digo, uma nova Robin. Desta vez, uma garota vai vestir as roupas do Menino Prodígio e ser ensinada por Bruce Wayne. O interessante é que percebemos um sentimento extremamente paternal de Wayne para com ela, que ainda é uma adolescente. Alguns ignorantes poderiam sugerir que o Batman está sendo pedófilo ou algo maldoso do tipo, mas é só usar um pouco o cérebro para se perceber que não se trata disso em hipótese alguma. A realidade é que Wayne não suportaria perder mais um parceiro, ainda mais com uma tenra idade. É por isso que ele faz de tudo para protegê-la e ensiná-la a se tornar mais capaz.

Já na parte 2, o problema atinge um âmbito maior, onde a figura do Batman começa a incomodar até mesmo as autoridades de nível nacional, como o presidente. Afinal, Wayne está constantemente desafiando as forças policiais do Estado, fazendo um trabalho que eles não conseguem, que é controlar Gotham. Nisso, surge até mesmo o Super Homem, em um crossover interessantíssimo, que vai tentar chamar o Cavaleiro das Trevas à razão e fazê-lo parar de lutar contra o crime. Isso é interessante, pois o Homem de Aço está fazendo um papel de pau mandado do governo norte-americano, coisa que eu jamais imaginaria já que, bem, ele é o cara mais forte do mundo e no fundo dá para perceber que ele sabe que o Batman está fazendo o certo e justo.

Por fim, por trás de tudo, há o conceito da Guerra Fria, bombas nucleares e a ilha de Corto Maltese, que vai sofre com uma guerra pela ocupação entre EUA e URSS. Mas esse plano de fundo está bem apagado e só vai servir para alguns eventos que acabam ocorrendo em Gotham… se nem fosse citada, nem faria falta na animação.

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A animação tecnicamente é muito boa, com movimentos fluídos e cenas de ação de tirar o fôlego, especialmente na segunda parte, onde até o Coringa tem enorme participação. E é sempre bom ver esse vilão, obsessivo, compulsivo e psicoticamente apaixonado pelo Batman. Eu não sei se era o meu monitor, mas alguns personagens, quando apareciam na televisão da animação, possuíam um rosto esverdeado… bem estranho.

Grande parte da excelência da animação também vai para a trilha sonora. Simplesmente épica, grandiosa e que não perde tanto para o que Hans Zimmer fez para a trilogia de Christopher Nolan. Christopher Drake trabalhou muito bem nas orquestrações, que trazem o caráter épico ainda mais à tona da animação.

É muito bom ver uma animação levada a sério a esse ponto. Extremamente adulta, não há tanto espaço para piadinhas ou gracinhas. O clima pesado da violenta Gotham está presente a todo momento, evidenciado pelo caráter amargo e cansado do idoso Bruce Wayne, o que traz ao Batman um caráter mais brutal do que eu jamais vi.

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Nota final: 5 estrelas (em um total de 5)

[Resenha/Livro] A rainha do castelo de ar

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Título Original: Luftslottet som sprängdes

Autor: Stieg Larsson

Ano de lançamento: 2007 (Suécia)/2009 (Brasil)

Editora no Brasil: Companhia das Letras

Número de páginas: 685

Finalmente cheguei ao final da trilogia Millennium. Finalmente entre aspas, porque devo ter levado no máximo dois meses para finalizar os três livros, que chegam às quase 1800 páginas, somados. E eis que terminei o maior livro da série: A rainha do castelo de ar.

O livro é uma continuação direta do anterior, diferentemente de A menina que brincava com fogo para com Os homens que não amavam as mulheres. Por isso, era de se esperar um início mais rápido e sem enrolações, correto? Sim, porém é aí que as coisas se complicam.

O segundo livro da série claramente é onde há mais ação. Já o terceiro consegue ter menos ainda do que o primeiro. Entendo A rainha do castelo de ar como uma grande investigação. Lenta e enrolada. Veja bem, Larsson conseguiu fazer um livro inteiro investigativo sem muitas cenas violentas, mas a tensão prossegue mais ou menos igual, porque agora Mikael Blomkvist está correndo contra o tempo para salvar Lisbeth Salander do seu maior inimigo de todos os tempos: o próprio Estado sueco.

Como nos livros anteriores, Larsson prossegue com sua veia jornalística pulsante. Acredito que nesse livro isso se tornou muito mais latente e importante: o alvo agora não é tão-somente quem  pratica violência contra a mulher, mas sim contra um Estado permissivo e cheio de manobras ilegais e inconstitucionais para proteger seu bem próprio, travestindo isso de “para o bem da nação”.

Essas atitudes não são incomuns de serem vistas ao longo da nossa própria história, verídica e atual. Abusos de autoridade e o Estado que fecha os olhos quando alguém fraco e oprimido sofre algum dano é o foco principal de Larsson. Eu não esperava menos, pois ao final do segundo livro, estava clara que agora a batalha de Lisbeth e Mikael seria contra a própria Suécia (in)constitucional e corrupta.

Mas aí que vem o diferencial da obra: ao invés de condenar absolutamente tudo e todos, Larsson vai na contracorrente e consegue perceber que uma laranja podre não precisa, necessariamente, contaminar toda a árvore. Por isso, ele usa de figuras representativas do Estado sueco do livro para colaborar em ver também o lado de Lisbeth Salander, que sofreu pelos abusos das autoridades desde que veio ao mundo.

Blomkvist e Salander na adaptação cinematográfica sueca de A rainha do castelo de ar.

Blomkvist e Salander na adaptação cinematográfica sueca de A rainha do castelo de ar.

Com isso, Larsson consegue demonstrar que nem todo mundo que está no topo da cadeia autoritária está ali para proteger planos mirabolantes e prejudiciais ao indivíduo do Estado. Isso o caracteriza como um autor (e jornalista) bastante sensato. Penso que, caso a história fosse transcorrida de forma a condenar absolutamente todo o governo sueco, o autor estaria sendo não somente injusto, mas também deveras infantil.

Mas isso também se deve principalmente ao livro se passar no século XXI, enquanto os acontecimentos fatídicos que levariam a todo o problema em torno de Lisbeth acontecer remontam à Guerra Fria. Todos sabemos que essa época foi marcada pela espionagem e planos sigilosos. É nesse contexto do sigilo que Larsson embaseia suas críticas aos abusos estatais.

Durante todo o livro, somos brindados com palavras e termos como “sigiloso”, “segredo de estado”, “questão de segurança nacional” e outros. Com isso, Larsson consegue causar no leitor um sentimento misto (ao menos em mim): é compreensível haverem questões sigilosas de Estado, principalmente na época da Guerra Fria, mas ao mesmo tempo isso é extramente enojante, principalmente porque, por causa desse tipo de atitude, alguém está sendo prejudicado. No caso é Lisbeth Salander, a personagem principal do segundo e terceiro livros, que aprendemos a amar, mesmo com seu jeito peculiar (e não retardado) de ser.

Com isso me ponho a pensar: quantas pessoas são prejudicadas devido a essas coisas sigilosas ainda hoje? Quantas pessoas não sofrem abuso de estado? Como historiador, sei que há um tempo para essas informações serem liberadas para o povo em geral, que é cinquenta anos. Esse é o diferencial de Larsson: com sua ficção, consegue nos colocar para pensar em questões extremamente atuais e A rainha do castelo de ar funciona bastante como um livro de história também, pois muitos fatos da Suécia são liberados, ao passo que também históricos das instituições mencionadas também são detalhados (talvez com um bom tanto de fantasia, afinal, é uma ficção).

O terceiro livro da série é, por tudo isso, bastante lento, arrastado e até mesmo repetitivo. Por haver muitas provas e detalhes a serem descobertos, seja por Blomkvist, Salander ou qualquer outro membro envolvido na investigação, quando parece que o livro vai começar a engrenar de vez e vermos a luz no fim do túnel, tudo pára novamente pois a investigação fica travada por algum outro problema.

Mas não se engane: A rainha do castelo de ar está longe de ser uma leitura chata e penosa. Essa lentidão consegue nos proporcionar uma reflexão aprofundada do tema. Acredito que foi o livro em que mais pensei sobre, e com mais calma. Diferentemente da raiva para com os homens que violentam mulheres em Os homens que não amavam as mulheres, aqui encontramos um Larsson mais calmo, mas não menos denunciador: os crimes que ele denuncia são graves, em diversos âmbitos, inclusive da incapacidade da polícia de proteger o cidadão.

O foco da denúncia, no final das contas, são as instituições de Estado, onde todas podem ser coercitivas e nocivas, caso não olhem para o indivíduo e repensem seus atos. Como a arrogância costuma imperar nos doutores do alto de suas cadeiras autoritárias, normalmente esse indivíduo é pisoteado. É o caso de Salander, pisoteada desde o início de sua vida.

A importância da imprensa para esse tipo de denúncia é exaltado durante todo o livro também. Larsson era um jornalista, e A rainha no castelo de ar soa como um ode à sua profissão e fica claro que o Blomkvist jornalista é o alter ego do autor nesse ponto: se há algo para denunciar, a imprensa jamais deve se omitir. E Mikael jamais se omitiria, desde que possa provar tudo o que disse. Inclusive correndo risco de vida, a fibra e coragem do jornalista deve prevalecer, sempre buscando divulgar a verdade à população, sobre o que quer que seja.

A rainha no castelo de ar, por mais lento que seja, apresenta questões contundentes e torna a trilogia Millennium certamente obrigatória para qualquer leitor interessado em uma leitura provocativa e de caráter denunciador, além do que o livro possui o melhor final de todos da série, dá uma sensação realmente de “fim”. Um brinde a Stieg Larsson, um dos melhores autores e mais corajosos autores que já tive o prazer de ler.

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Nota final: 4 estrelas (em um total de 5)

[Resenha/Filme] O Aviador

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Nome original: The Aviator

Ano: 2004

Diretor: Martin Scorsese

Tempo de filme: 170 min

Depois das 3 horas e 35 de Watchmen ontem, decidi hoje ver um filme não tão longo – mas ainda assim longo: O Aviador, do premiadíssimo Martin Scorsese. Para variar, é mais um filme que eu planejava ver fazia tempo e deixei de lado inúmeras vezes.

O filme vai focar em boa parte da vida de Howard Hughes, interpretado por Leonardo DiCaprio. Para quem não sabe (tipo eu, que também não sabia disso), Howard Hughes realmente existiu e foi, acima de tudo, um magnata. Rico desde sempre, Hughes foi diretor e produtor de cinema, aviador e homem de negócios. Como o próprio título elucida, teremos um foco muito maior na sua parte como aviador.

O foco do filme é nos Estados Unidos do início do século passado, mais ou menos entre os anos 20 e até quase o fim da década de 40. Ou seja, um prato cheio para se abordar um filme sobre aviação, já que de 1939 a 1945 tivemos a Segunda Guerra Mundial, onde aviões foram utilizados amplamente em combate. Não, não vemos nada sobre a guerra, o filme não é sobre isso e nem tenta abordar. Essa é só a desculpa para contar sobre um personagem no mínimo curioso.

Hughes foi, sem dúvida alguma, um homem ousado segundo o filme. Por ter dinheiro em excesso devido a firmas de extração de petróleo herdadas do pai, Howard cresceu sem muitos freios e sem saber tanto o valor do dinheiro. O resultado disso são investimentos pesados em coisas que na época não rendiam tanto, como, por exemplo, filmes. Sabe o clássico Scarface, protagonizado pelo Al Pacino? Então, a primeira versão do filme foi produzida e financiada por Howard Hughes. E foi um filme muito controverso na época devido à sua violência.

Mas antes, Howard produziu um filme mais afeiçoado ao seu personagem do filme: Hell’s Angels, um filme que cobre uma intensa guerra no céu, protagonizada por pilotos de aviões de combate. É aí que conhecemos bem a figura protagonizada por DiCaprio, que não possui amarra alguma e nem está muito ligado ao real.

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Esse início é só para nos trazer à tona quem é Howard Hughes, o magnata. O restante do filme é sobre a queda e a redenção dele. E isso é muito coroado por uma das melhores atuações de Leonardo DiCaprio. Todos sabemos hoje o quão bom é esse ator, mas Hughes é um personagem bastante difícil, devido aos seus inúmeros transtornos.

Mania de limpeza, sociopatia, insanidade… essas são algumas das características que definem o definhante Howard Hughes conforme seus problemas pessoais e financeiros vão se agravando. Em meio a isso, há o aviador propriamente dito, esse alter ego de Hughes, extremamente apaixonado por aviação e por tudo o que voa. Sua ousadia beira a sandice e ele não nega esforços para evoluir cada vez mais seus aviões e sua companhia aérea (a TWA).

Scorsese aproveita o drama para trazer à tona um conflito de interesses entre a TWA e a Pan Am, uma das gigantes do ramo, cujo dono é interpretado pelo excelente Alec Baldwin, que vai fazer de tudo para que os interesses de Hughes sejam passados para trás. Mas ao invés de dar atenção a esse conflito, o que daria um outro filme, as luzes voltam sempre ao personagem principal de Howard Hughes, transtornado, psicótico, paranóico.

E esse é o charme maior de O Aviador: a atuação. O filme seria bastante chato se não contasse com atores de peso e suas atuações impecáveis. Destaque também para Cate Blanchett, que encarna Katharine Hepburn, uma estrela do cinema da época que se envolve amorosamente com Hughes. John C. Reilly também trabalha muito bem como Noah Dietrich, o conselheiro e mestre das finanças das empresas de Hughes.

DiCaprio e Blanchett

DiCaprio e Blanchett

Um ponto baixo vai para a relação entre Hughes e Ava Gardner (Kate Beckinsale), pois achei a relação dos dois muito apressada e fiquei até mesmo sem entender quem era essa mulher, de onde surgiu e para onde iria e nem por que Howard estava com ela. E isso dura alguma boa parte do filme, e foi um tanto deslocado.

A fotografia do filme também é excelente, principalmente por contar com diversos ângulos aéreos, pois bons momentos do filme são passados no ar, colados em um avião. Em solo também não desanima, recriando todo aquele clima da primeira metade do século passado. Isso também é muito ajudado pela bela trilha sonora, contando com um trabalho de músicas típicas da época e outras sinfonias.

O Aviador é um bom filme. Não é o melhor do Scorsese que já vi, mas a atuação de Leonardo DiCaprio está certamente entre as minhas favoritas desse ator de quem muito gosto. Não posso reclamar de absolutamente nada do filme, creio eu, pois fui levado diretamente ao ser exótico e maníaco que foi Howard Hughes.

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Nota final: 4 estrelas (em um total de 5)

[Resenha/Filme] Watchmen

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Nome original: Watchmen

Ano: 2009

Diretor: Zack Snyder

Tempo de filme: 215 min (Ultimate Cut)

Um grupo de heróis aposentados está sendo caçado por um vilão misterioso. São os Vingadores? Não. São a Liga da Justiça? Não. São os Watchmen.

Watchmen é uma obra originalmente criada por Alan Moore, ilustrada por Dave Gibbons e colorida por John Higgins. Já dá para perceber, portanto, que se trata de uma história em quadrinhos, com sua publicação começada em setembro de 1986 e finalizada em outubro de 1987 nos Estados Unidos.

A série é largamente cultuada por sua complexa história, que extrapola o comum para esse tipo de mídia, mas o criador também é famoso por ter criado outro quadrinho muito cultuado: V de Vingança. Eu não conheço os quadrinhos, não sou muito fã desse tipo de mídia. Tenho imenso respeito, mas não consigo gostar, ao menos nas vezes que tentei (diferentemente de mangás, que adoro – ao passo em que detesto animes [vai entender] e gosto de cartoons).

Capa do quadrinho nº 1, publicado pela DC Comics.

Capa do quadrinho nº 1, publicado pela DC Comics.

Há muito tempo planejava ver Watchmen, o filme de 2009, dirigido por Zack Snyder (do aclamado 300). Mas ia deixando pra lá sempre, pois além de quadrinhos não me atraírem, há muito tempo que o único super herói que me interessava era o Batman. Então resolvi deixar esse meu preconceito de lado e coloquei o filme pra rodar. E foi a maior versão, a Ultimate Cut, com seus titânicos 215 minutos, ou seja, 3 horas e 35 minutos!

Snyder é conhecido pela arte visual que oferece em seus filmes. Isso é percebido em 300 e em Sucker Punch (filme posterior a Watchmen) e a primeira coisa que me interessou no filme foi justamente a capa, ou seja, algo visual. O jogo de cores me atraiu muito, mostrando uma cidade escura com luzes brilhantes e um tom azulado permeando tudo.

O filme segue esse estilo artístico, com a maior parte dele sendo no período noturno. O clima noir é notado através disso, com ambientes escuros e um clima investigativo. Porém, ao invés de detetives comuns, temos os heróis chamados de Watchmen.

Em uma época onde o criminoso se fantasiava para não ser descoberto, o governo americano resolveu fazer o mesmo: criou uma força de elite chamada Watchmen (algo como Vigilantes, em português), de pessoas altamente capacitadas e bem treinadas em combate, tiro, escalada, dirigir e etc… tudo o que um super-herói precisa, menos super poderes.

Os Watchmen

Os Watchmen

E isso muito me agrada. Como já disse acima, meu super herói favorito é o Batman. E ele não tem super poderes (o super bolso de Bruce Wayne não pode ser contado como isso), mas sim um excelente treinamento em artes marciais e tudo mais. É a mesma coisa com os Watchmen. A não ser pelo Dr. Manhattan (Billy Crudup), um dos principais personagens do filme, que possui poderes que podem ser descritos como… bem… divinos, dignos de um deus mesmo, já que ele pode transformar a matéria à sua vontade e é, por assim dizer, invencível.

Mas o resto dos heróis são humanos, extremamente humanos. E é nessa humanidade que o filme vai permear, mas não somente dos Watchmen, mas também de todos à volta. O filme se passa durante a Guerra Fria, em sua maior parte nos anos 80, com flashbacks para anteriormente, mostrando o background dos personagens para compreendermos suas fraquezas e fortalezas. Como todos sabemos (ou deveríamos saber, já que, via de regra, você teve aulas de história na escola, ou até mesmo aprendeu isso em aulas de geografia), o terror de uma guerra nuclear era iminente.

Tendo em vista isso, foi criado uma espécie de medidor de cataclismo: um relógio que conta os minutos para a meia noite, que seria quando as ogivas já estariam preparadas para serem lançadas pela URSS (pessoas fãs de Iron Maiden podem ouvir a música 2 Minutes to Midnight, que fala desse tema). No universo de Watchmen, paralelo ao nosso, a ameaça soviética está em curso e o relógio se aproxima cada vez mais para a meia noite.

O interessante desse tema é que durante o filme o relógio é algo natural e que vai aparecer em diversas cenas. Isso é legal, pois sempre vai trazer a lembrança ao espectador do real perigo: uma guerra nuclear que pode destruir o mundo todo. Isso me levou a pensar em como as pessoas daquela época viviam (nasci em 1990), principalmente as americanas, com um medo intenso de que em breve tudo terminaria em uma explosão de mil sóis.

Mas onde entram os Watchmen aí no meio? Afinal, por enquanto estou descrevendo um filme de espionagem e só. Na verdade, a participação deles nisso é nenhuma. A força-tarefa dos Watchmen já está aposentada há muito tempo e vestir-se como um vigilante mascarado é considerado crime. Mas então surge alguém matando mascarados e então uma série de eventos começa a se desencadear, em paralelo ao conceito de guerra nuclear, onde somente o todo-poderoso Dr. Manhattan realmente participaria ativamente, tentando destruir, desviar ou o que quer que seja essas bombas.

Rorschach

Rorschach

Nisso, surge o personagem principal e narrador do filme: Rorschach (Jackie Earle Haley), um dos aposetandos Watchmen. Não aceitando sua aposentadoria, ele segue vivendo à margem da sociedade, foragido e procurando fazer justiça com as próprias mãos. E resolve investigar o caso do assassino de mascarados, o que o leva a tentar reunir novamente todos os antigos heróis.

Rorschach é um dos personagens mais legais já criados. Sua característica brutal e de justiça a qualquer custo nos leva a pensar na questão do ser humano. Rorschach, apesar de um tanto sanguinário e vingativo, é talvez o mais humano de todos os Watchmen. Além de ser ele que traz esse clima noir mais ainda à tona, usando um sobretudo e um chapéu, além de possuir um diário que vai narrando os eventos do filme. Classy.

E, claro, espere por bastante ação. Apesar de fugir dos conceitos comuns de um filme de super herói, Watchmen ainda é um filme sobre heróis. E dificilmente se sustentaria sem boas doses de ação, com momentos tensos e boas coreografias de batalha. Mas acredito que ninguém vá gostar do filme tão somente por isso.

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Watchmen também teve uma escolha excelente de trilha sonora, com músicas de consagrados artistas, como Bob Dylan, Simon & Garfunkel e Smashing Pumpkins. Esse encontro de músicas antigas com novas composições traz um ar fresco ao filme e define bem o que é Watchmen: uma história com um contexto até mesmo muito batido (Guerra Fria), mas com uma execução surpreendente e com muita personalidade, principalmente por termos heróis tão humanos (e até mesmo inumanos, como o Dr. Manhattan) em uma época extremamente conturbada da humanidade.

No fim das contas, as 3 horas e 35 minutos voaram e eu fiquei com vontade de ver mais. Mas isso só ocorrerá quando eu ler os quadrinhos. Agora estou com vontade de superar o meu desgosto por essa mídia e enfrentar a leitura de todos os fascículos de Watchmen.

Quanto ao filme, concluindo, trata-se de uma desconstrução do super herói, com um roteiro extremamente original e recompensador, com um clima extremamente cativante  e intimista. Eu gosto muito dessas reconstruções históricas, desse E SE… Não se aprende história propriamente dita com esse filme, mas vemos bons conceitos empregados, principalmente em relação a esse medo de cataclismo e pode aguçar a vontade de quem vê a querer aprender mais sobre a época em que chegamos muito próximos à meia noite.

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Nota final: 5 estrelas (em um total de 5)